Ele não queria casar com moça que enxergasse.Tinha medo que lhe botasse “um par de guampas”. Aí encontrou Regina – que é cega e canta bem.
É por isso que quando a dupla canta toadas sertanejas na Travessa Oliveira Bello, Roque vai logo avisando à plateia: “Olhe gente, eu sou cego. E a Regina não enxerga”. O povo desata a rir do matuto bom de trova, cujos trinados fazem eco da Praça Zacharias às esquinas da Cândido Lopes, pondo em risco a popularidade de estátuas vivas e, se bobear, até do veterano Plá.
Embora cinquentões, Roque e Regina são relativamente novos no show bizz do Calçadão. Somam oito anos de carreira em uma pá de esquinas. A primeira foi a da Rua Monsenhor Celso com a XV, onde dividiam espaço com a vendedora de bilhetes Terezinha Santos, a Borboleta 13. Não se criaram, claro, intimidados pelo gogó mais poderoso do Primeiro Planalto.
Viola no saco. Mas em outros postos havia a concorrência dos caminhões de sindicato, apagando com uivos de “Xô patrão” a poesia doída de “Chico Mineiro”. Para amargar, tinham de fugir dos fiscais da prefeitura, sempre a lhes cobrar os alvarás, fazendo cumprir nosso excelso zelo pelo espaço público.“Judiação, covardia...”, protesta um passante ao ouvir Roque e Regina contando a longa jornada noite adentro até chegar ao ponto de melhor acústica em todo o Centro – a Oliveira Bello. É sempre assim. Os artistas sentam, os populares se aproximam. Roque dedilha, faz gracejo e solta um “né, Regina”. Eita, “a pessoa é para o que nasce”.
O circuito lítero-musical da XV salvou o casal dos dias ruins trazidos pelos baratíssimos produtos chineses. Há duas décadas, R & R vendiam artesanato e utilitários produzidos nas oficinas do Instituto dos Cegos. Com o avanço das lojas de R$ 1,99, a fonte secou. Roque apelou para a voz, seara de Ray Charles, Stevie Wonder e Isolda, por que não ele?
Não conhecia o lá, o dó, o mi. Mas tinha bom ouvido e uma lágrima na garganta, qual Leonardo, qual Zezé. Logo descobriu que cantava “O menino da porteira” tão bem quanto Sérgio Reis. Com uma primeira voz a modo, poderia fazer algum dinheiro. Regina aprendeu enquanto aninhava as gêmeas Sheila e Shaiane. Gostou tanto que ano passado decidiu gravar um disco. Roque que se virasse. “Os cegos também amam” – o CD – é uma produção barata, feita com a ajuda de um amigo e dos anjos e santos de Deus. São 13 faixas a R$ 10. Pelos cálculos, foram vendidas cinco mil unidades, o que aumentou o sorriso do casal, cujo tino merecia ser copiado por comerciantes de cara amarrada do Centro.
As piadas de Roque se dividem em 50% bobagens de salão e 50% estímulos ao consumo, ambos emoldurados pela irresistível malícia cabocla. “Eles abriram a mão para bater palmas para nós, né Regina”, sugere, sobre a hora de pôr a mão no bolso. Difícil quem não ponha, principalmente quando a dupla canta a dilacerante Armadilha do destino, de Lourenço e Lourival. Só vendo.
Desde Coração de Luto e O telefone chora ninguém tinha composto algo igual: a canção narra a tragédia de Ronaldo, um homem que se enrosca, sem saber, com a filha abandonada ao nascer. Depois de praticar “horríveis pecados”, os amantes morrem, atingidos pelo “punhal da tristeza”. Édipo e Jocasta são bolinhos. Fosse eu, rebatizava a história de “A tragédia da Oliveira Bello”, tamanho bururu causa ali.
Sim, a fama do casal está selada e se estende ao longe, chegando a Aparecida do Norte, onde R&R se apresentam uma vez por mês. Soube que levam os romeiros aos céus com a interpretação imodesta de A marca da ferradura. São tantos os aplausos que Regina queria morar por lá. Como diz Roque, ela não enxerga, mas não é cega. Aparecida é a esquina do Brasil. S’imbora.
*Dizeres da música Os cegos também amam, da dupla Roque e Regina.
Reprodução: Gazeta do povo
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